IntroduçãoSuponhamos que uma cosmologia indígena pudesse ser resumida em uma figura ou, melhor, em uma operação. No mundo mesoamericano a dita operação seria a dobra. Uma dobra é a parte dobrada de uma matéria flexível -tecido ou papel -que permite que um dos lados se sobreponha ao outro de forma que o interior se situe no exterior e vice-versa. Tentarei mostrar como esta dobra distingue e articula os dois domínios nos quais se divide o universo indígena: o estado solar, extensivo e discreto habitado pelos humanos e demais seres ordinários, e o estado intensivo e virtual no qual habitam os espíritos. A polaridade humano/espírito constitui, de fato, a principal divisória entre os seres. Se na Amazônia a distinção humano/ não-humano parece corresponder principalmente à oposição humano/ animal (cf. por exemplo Viveiros de Castro 2002a:357; Vilaça 2005:451), em Mesoamérica o não humano é por antonomásia um espírito: deuses, almas, mortos, nahuales, fantasmas... Estes seres do domínio intensivo se dobram sobre si mesmos para adentrar no mundo solar, assim como, inversamente, nós, os seres solares nos desdobramos -transitória ou definitivamente -para nos dissolvermos no domínio intensivo. Os dois estados -como em um tecido -formam o anverso e o reverso do cosmos. A dobra de um é o desdobramento do outro (como veremos, a finalidade provisória da dobra é formar um envoltório que constitui tanto um objeto como um conceito mesoamericano essencial). A menção aqui ao tecido não é, entretanto, casual, uma vez que o cosmos mesoamericano parece ser frequentemente pensado como uma peça indí-gena tecida. Uma peça reversível cuja operação de dobra permite a transição entre ambos os lados do tecido (cosmos). A alternância entre o anverso e o reverso é a diferença entre um estado descontínuo e um estado contínuo: se no primeiro o trançado das figuras é nítido e discreto, no segundo os motivos se desvanecem até perderem seus contornos.