Na sua introdução a A alma e as formas, Judith Butler, ao comentar o conceito de forma de Georg Lukács, observa que "a forma está sempre em conexão com a vida, com a alma, com a experiência; a vida produz a forma, mas a forma destila a vida" (Butler, 2015, p. 16). Essa metáfora captura admiravelmente bem a natureza complexa das relações entre determinações objetivas que constrangem os atores no mundo social e formulações ideacionais que elaboram para dar conta desse mundo. Contra uma visão estritamente formalista que confere às ideias realidade própria, afirma se que estas só adquirem sentido e força social quando conectadas ao contexto histórico; contra um reducionismo simplório, defendese que o processo de pensar a realidade concreta, o trabalho de categorizála, de procurar en tendê la e justificála, é, por si só, constitutivo dessa realidade. Mais do que isso, como dizem Berger e Luckmann, toda realidade é interpretada e grande parte da luta política é * Agradecemos aos pareceristas anônimos de Lua Nova e a San Romanelli Assumpção pelas valiosas sugestões.
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MOVIMENTOS SOCIAIS COMO TEÓRICOS POLÍTICOS: WOLIN, IDEIAS E POLÍTICAS PÚBLICASLua Nova, São Paulo, 102: 2017 232 travada precisamente em torno dessa interpretação (Berger e Luckmann, 1994, p. 35).Este artigo inscrevese nesse espírito. Pretendemos discutir a importância das ideias tanto para definição das situações políticas quanto para produção de diagnósticos sobre a realidade. No que se refere à definição das situações políticas, este texto é tributário de uma literatura recente no campo da ciência política conhecida como "virada idea cional" (Béland, 2005; Béland e Hacker, 2004;Berman, 1998;Blyth, 1997;Goldstein, 1988; Goldstein e Keohane, 1993;Hay, 1996;2008;2011;Schmidt, 2010; Schmidt e Radaelli, 2004; Schmidt e Thatcher, 2013). No que diz respeito à produção de diagnósticos da realidade, este texto amparase em longa tradição das ciências sociais e da teoria política. Ao jun tarmos as duas perspectivas, pretendemos pensar os movi mentos sociais não apenas como carriers de ideias (Berman, 1998) ou como political entrepreneurs (Kingdon, 2014), mas também como "teóricos políticos", no sentido atribuído a esse termo por Sheldon Wolin (1969).Nosso objetivo central tem duas dimensões interli gadas, a primeira consiste em utilizar a literatura que discute o impacto das ideias na definição das situações políticas para pensar a dimensão ideacional dos movimentos sociais e seus efeitos de "generificação" 1 das políticas públicas e, baseando se nessa discussão e lançando mão das contri buições da teoria política, mostrar que os movimentos sociais, ao faze rem isso, não apenas produzem impactos ideacionais sobre normativas estatais, como também conseguem elaborar aná lises complexas sobre a realidade que encerram e veiculam eixos distintivos de uma teoria política. O que pretendemos mostrar é que os movimentos sociais não têm apenas ideias, 1 Tomamos aqui "generificação" e gender mainstreaming como sinônimos; cf. Walby (2005).
Renato Perissinotto, José S...