Que disse que o Amor não cabe na Ciência e vice-versa? Há muito o antitético par razão-emoção deixou de representar uma real oposição de ideias e de mundos. Ao contrário, hoje sabe-se, e muito bem, que a busca pela completude que pode ampliar o sentido da vida exige que fujamos das dicotomias e aceitemos que diferentes experiências não são necessariamente incompatíveis. E isso também acontece no universo acadêmico. Jeane Carozo Rocha, com sua pesquisa Representações verbo-visuais da cidade de Aracaju em folhetos de cordel, agora apresentada na forma de livro, é um excelente exemplo dessa forma contemporânea de construir sentidos.
Como todo trabalho acadêmico, Representações verbo-visuais da cidade de Aracaju em folhetos de cordel, sua dissertação de Mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe, tem todos os elementos que caracterizam o gênero textual que o identifica. Descrição do corpus, definição de objetivos, de metodologia de abordagem, exposição de referentes e de pontos de vista, análise crítica, conclusão, e, claro o toque pessoal do ponto de vista da pesquisadora, tudo isso é o que se espera encontrar em uma publicação dessa natureza. E, de fato, encontramos o esperado. Estudo científico que passou pela pesquisa, pela orientação, pelo desenvolvimento das reflexões, pela definição do trabalho a ser apresentado a uma banca de examinadores/as, defesa, título de Mestra... Esse é o necessário roteiro a ser seguido no caso de uma pós-graduação stricto sensu que almeja chegar, com sucesso, a seu desfecho. E isso, como já foi dito, se deu.
No entanto, Representações verbo-visuais da cidade de Aracaju em folhetos de cordel é mais que uma dissertação de Mestrado. É um trabalho movido pela sensibilidade de Rocha desde sua concepção, porque, afinal, uma pesquisa em Letras/Literatura não pode prescindir do texto. Nesse sentido, os folhetos de cordel História de Aracaju (2006), de Pedro Amaro do Nascimento; Aracaju ontem e hoje! (2014), de Alda Santos Cruz; e Aracaju como eu vejo (2014), de Zezé de Boquim, escolhidos por Rocha revelam, antes de qualquer coisa, um compromisso explícito e afetivo da autora com sua cidade natal e esse compromisso, certamente, foi fundamental para que a abordagem extrapolasse as convenções acadêmicas e ganhasse a marca da pessoalidade e da vivência concreta do corpus também como fontes para o autoconhecimento e para a superação dos limites revelados: o pouco contato de Rocha com a literatura de cordel decorrente da ainda pouca representatividade desse gênero nos espaços educacionais.
Unir folhetos de cordel, Aracaju e estudos culturais e literários foi o caminho traçado por Rocha para cumprir uma jornada desafiadora, dadas suas vivências anteriores, em que o contato com o folheto de cordel, essa produção tão nordestina, foi quase inexistente. Movida pela consciência dessa precariedade, Rocha se pôs em marcha e pôde viver, literalmente, a odisseia dos/as pesquisadores/as, desbravando fontes em que talvez fosse possível beber a água do conhecimento, para, em seguida, tornar-se fonte também.
A ida à casa do poeta popular Zezé de Boquim; aos Mercados Centrais Antônio Franco (1926), Thales Ferraz (1949) e Albano Franco (2000); à Casa do Cordel; à cordelteca da biblioteca Epifânio Dória; à biblioteca Claudemir Silva; e à biblioteca do SESC, unidade do Centro, inscreveram o caminhar de Rocha rumo à sua formação como mestranda e à chegada ao título de Mestra em Estudos Literários. Os percurso e percalços, entretanto, forma vividos com a típica força de quem encontra seu tema e que fazer do mergulho nele um mergulho também em si própria, visto que sua cidade natal, Aracaju, ganharia diferentes cores e tonalidades, a partir da leitura dos dezenove folhetos com os quais Rocha teve contato.
Dezenove, contudo, é um número ditado pela linguagem do Amor. E Rocha seria, sim, capaz de viver e traduzir essas dezenove experiências, a partir de seu desejo obstinado de mergulhar no universo cordel-Aracaju. Todavia, no âmbito da Ciência, dezenove é um número vasto demais. A precisão pedia moderação. As perguntas que logo surgiram – “De que forma Aracaju foi representada, real ou irreal? Sob aspectos culturais, simbólicos, religiosos ou turísticos? Por meio de seus personagens populares e suas personalidades? Por seus espaços ou por memórias?” – convidavam a essa moderação. Assim, História de Aracaju (2006), Aracaju ontem e hoje! (2014) e Aracaju como eu vejo (2014) se tornaram o corpus a partir do qual o caminho teria os necessários e já explicitados contornos do universo acadêmico, sem perder a doçura da relação amorosa com a terra natal.
A escolha do foco de abordagem – a linguagem verbo-visual presente nos três folhetos de cordel escolhidos – também revela a sensibilidade de Rocha, que percebeu a necessidade de unir verbo e imagem, para revelar a cidade de Aracaju a partir do modo como foi traduzida nessas obras, que, tal como a base teórico-crítica abraçada revela, são, sim, compostas pela dualidade palavra-imagem. E a pertinência de dar relevo a essa característica dos folhetos de cordel nos possibilitou (nós, leitoras e leitores), no decorrer da leitura do trabalho de Rocha (e aqui lembro que estive em sua banca de Mestrado), ver o desenho da “menina”, da “pessoa viva” que Aracaju se tornou a partir da poesia-imagem de Pedro Amaro do Nascimento, Alda Santos Cruz e Zezé de Boquim.
Parabenizo Jeane e seu orientador pela experiência, agora compartilhada com um público maior, de unirem forças para, através de Representações verbo-visuais da cidade de Aracaju em folhetos de cordel, permitir que brotem, diante de nós, os tantos desenhos das tantas esquinas, em tempos igualmente múltiplos, desta cidade tão amada, esta menina que nos sorri todos os dias, acolhendo graciosamente tanto seus filhos e suas filhas (como Jeane Rocha) como nós, que chegamos de longe para nos entregarmos à sua beleza. A leitura, enfim, criteriosamente mapeada por capítulos temáticos, revelará um caminho traçado com razão e emoção, capaz de promover interesse, conhecimento, revelações e surpresas.