Para um entendimento da matemática pa'ikwené (palikur) 2
Alan PassesRESUMO: Este artigo discute um aspecto do conhecimento pa'ikwené chamado púkúha, que significa tanto "entender" quanto "contar". Ele explora a numerologia indígena e a relação próxima, não menos imaginativa do que empírica, entre a matemática e a lingüística, que nem sempre aparece em sociedades não orais como a nossa. O sistema matemático pa'ikwené é conceitualmente inventivo e lexicalmente profuso: alguns numerais têm mais de duzentas diferentes formas no uso corrente, graças a um intensivo processo de transformações de morfemas baseado no acréscimo de afixos. Portanto, uma palavra-número pode pertencer a vinte e uma classes numéricas que se relacionam a cinco diferentes categorias semânticas, que incorporam diversos estados e atributos discretos (macho/fêmea, concreto/abstrato, animado/inanimado, natural/sobrenatural), assim como idéias aritméticas e geométricas específicas.Assumindo uma abordagem antiplatônica, o artigo descreve a matemáti-ca pa'ikwené como um modo de conhecimento inato, corporificado e metafórico (Lakoff & Nuñez, 2000), que classifica e expressa o mundo em que se vive. Propõe também que os números pa'ikwené operam simultaneamente nos níveis literal e figurativo, ou seja, ambos como símbolos com significados fixos e determinados, e como imagens polissêmicas de diferentes classes de coisas que compõem o universo nativo. PALAVRAS-CHAVE: Amazônia, Pa'ikwené/Palikur, conhecimento amerín-dio, etnolingüística, etnociência, etnomatemática, tipologia indígena dos números, classificação, metáfora.-246 -PASSES, A. DO UM À METAFORA... 1 é 1 e sempre 1, em qualquer língua; em inglês, claro, é "one"; em francês algo diferente. (Goody, 1977, p. 122) Joanna Overing (2003, p. 293) conta como os Piaroa, a quem seus vizinhos consideram "os intelectuais do Orinoco", apreciam o debate, particularmente sobre os aspectos metafísicos do cotidiano. Meu interesse aqui é sobre o aspecto físico da vida cotidiana, como ele se revela por meio do discurso matemático e numérico dos Pa'ikwené, o povo talvez não menos intelectual (eu gostaria de acreditar) do rio Oiapoque, no norte do Brasil/Guiana Francesa. Muito do trabalho que realizei sobre a linguagem cotidiana pa'ikwené examinou a prática incorporada e o valor sociológico de tchimap, que significa tanto "ouvir" quanto "entender" (Passes, 1998;2000;2001;2002; 2004, p. 8). Este artigo trata de outra forma de entendimento e conhecimento pa'ikwené, chamada púkúh (a). Púkúh(a), de forma semelhante, significa "entender" e também tem um segundo significado: "contar". Em Pa'ikwené (uma língua arawak), você pode usar números para descrever comportamento social, ações e estados de ser. Assim, você pode dizer de um homem retraído ou isolado que ele "um-izou" a si mesmo, Ig pahavwihwé, ou que dois indivíduos se "dois-aram" a si mesmos, Egkis piyanméhwé, ou seja, eles se casaram.Este artigo pretende lançar alguma luz sobre o fenômeno da metáfo-ra matemática na fala indígena. Será argumentado que os números ...