Relato de um sobrevivente

Abstract

Três dias. Três dias neste outeiro. É hora de decidir. Creio mesmo que a decisão já está tomada, já me tomou como açúcar bem dissolvido em água. Ou fel. É necessário beber do cálice. Um dia brigamos porque ela estava cansada e não quis coar café, também já era madrugada, mas nada disso era desculpa. A gente nunca chegaria a um acordo sobre o que é um café doce e um café amargo. Incompatibilidade de paladares... Não, não posso me embriagar na vertigem agridoce das reminiscências. Tenho que me resolver, fazer alguma coisa, pensar, não sou enfim um ser racional? É preciso colocar em ordem as idéias, os desejos, como foi mesmo que tudo aconteceu? Terá sido alguns dias após o solstício de junho. Já havia sinais, não há dúvida alguma. Muitos avisavam; falavam de um gosto mais amargo na bebida que vinha dos lagares, de uma ou outra nota desafinada no coro dos campa nários, discreta desarmonia no balançar das redouças, uma quase imperceptível deselegância na dança dos hipocampos. Eram budis tas, esperantistas, espíritas, ou qualquer destes malucos místicos que ainda gostavam de falar em Era de Aquarius, não sei. O fato é que ninguém ouviu. Quem daria ouvidos aos gritos que escapam à noite dos hospícios, coados pelas grades de suas janelas?16