E ste texto aborda alguns aspectos do que se poderia denominar história da política religiosa na França, enfocando realidades que se distribuem entre os séculos XVI e XX e que envolvem as formas pelas quais o Estado trata a religião. Como justificar um recorte históri-co tão amplo? Na verdade, a história francesa aparece aqui a propósi-to de uma discussão mais geral sobre o lugar e o estatuto da religião na modernidade. Pode-se situar essa discussão fazendo-se referência a uma narrativa dominante sobre a relação entre tais termos. Segundo essa narrativa, contada em termos esquemáticos, antes da "modernidade" havia uma interpenetração da "religião" com a "política", o que as tornava indissociáveis. A Reforma instaura uma cisão definitiva na cristandade, sem contudo abalar de imediato o pressuposto anterior; o resultado foram as "guerras religiosas" dos séculos XVI e XVII, disseminadas por toda a Europa. A reação a tais conflitos provocou um questionamento da indissociabilidade entre "religião" e "política", criando as condições de possibilidade para um "Estado secu- A Religião que a Modernidade Produz: Sobre a História da Política Religiosa na França* Emerson Giumbelli lar". Nesse sentido, o Estado plenamente "moderno" é aquele conduzido sob uma exigência que declara desconsiderar a "religião": não só procura manter-se longe da influência das instituições religiosas, como também não interfere na existência delas.A história que vou contar aponta para uma outra perspectiva. Partindo de uma estratégia nominalista, a "religião" aparece ela mesma como uma categoria moderna. Quanto ao aspecto conceitual, existe uma série de estudos que insistem nas transformações ocorridas a partir do século XIV, e especialmente dos XVI e XVII, na noção de "religião"1 . Admitindo que as realidades que essa noção pretendia designar não eram evidentemente novas, salienta-se no entanto que se forjaram significados e estatutos originais para a categoria "religião". Várias gerações de pensadores contribuíram com formulações que provocaram não a desconsideração dessa noção, mas uma reconceituação que, paradoxalmente (pois tudo parecia apontar para seu desaparecimento no plano das realidades), a consolida como uma categoria relevante para a ordenação do mundo. Um outro aspecto da problemática é a dimensão política. Nesse caso, o que se pode argumentar é que, analogamente ao que ocorre no plano conceitual, longe de ser simplesmente desconsiderada, a "religião" assume sentidos que a colocam, de maneira original, na condição de critério significativo de ordenação social na perspectiva do Estado moderno. Ou seja, a dissociabilidade entre Estado e religião não implica necessariamente desinteresse do primeiro pela segunda. É com esse olhar que procuro abordar a trajetória da política religiosa na França.Mas por que a França? É fácil observar que a França ocupa um lugar paradigmático nas discussões sobre religião e modernidade. Trata-se, afinal, do palco das mais sérias e ameaçadoras "guerras de religião" no panorama europeu do século XVI; a resoluç...