Inicialmente, é preciso parabenizar os editores e a equipe envolvida na tradução e revisão deste clássico que é considerado um marco no nascimento da moderna psiquiatria. O precário conhecimento da história da medicina entre os clínicos e pesquisadores acarreta graves limitações na formação humanística e na capacidade de avaliação crítica das pesquisas e práticas em saúde. O pouco contato que temos com a história de nossa profissão é habitualmente feito por meio de textos elaborados por médicos sem adequada formação em História. O resultado é que, geralmente, temos acesso a uma visão simplista na qual alguns iluminados libertaram a humanidade da ignorância e da superstição. Habitualmente, vemos as práticas antigas como equívocos tolos e que atualmente vivenciamos o apogeu da Medicina, guiada pela real ciência e possuidora da verdade. É comum perceber um tom triunfalista nesses escritos de historiadores não profissionais ou mesmo em muitos editoriais das principais revistas médicas do mundo.Um bom antídoto contra tal atitude é a leitura direta dos textos originais que fizeram a história de nossa profissão. Nesse exercício, perceberemos, muitas vezes, o mesmo tom triunfalista em escritos de mais de cem anos, quando, por exemplo, na psiquiatria, não estava disponível nenhum dos tratamentos contemporaneamente reconhecidos como eficazes. Tal leitura pode nos causar um desagradável mas salutar sentimento de déjà vu. Como ouvi certa vez num congresso, "é preciso que nos lembremos que estamos sempre no meio na história, nunca no fim dela". Esta percepção nos ajuda a manter uma humildade intelectual que nos imuniza contra muitos equívocos.Por tudo isso, o trabalho de lançamento da versão em português do Tratado Médico-Filosófico de Pinel merece ser vigorosamente louvado. Essa obra, publicada pela primeira vez em Paris, em 1800, relata as pesquisas de Pinel durante quase dois anos como médico do hospício de Bicêtre, pouco depois da revolução francesa. Naturalmente, uma obra de tamanha importância comporta análises sob diferentes prismas. Nesta resenha, me concentrarei em alguns aspectos que me chamaram a atenção enquanto clínico e pesquisador em psiquiatria do início do século XXI lendo um trabalho escrito há mais de dois séculos. Assim, não entrarei em análises históricas, mas me deterei em algumas possíveis implicações para nossa prática atual como clínicos e pesquisadores em psiquiatria.A obra conta com uma apresentação escrita por Ana Oda e Paulo Dalgalarrondo, que abordam aspectos muito interessantes da história da psiquiatria na Europa e América, bem como o impacto de Pinel no Brasil. Nela aprendemos, inclusive, que um dos filhos de Pinel imigrou para o Brasil, havendo até hoje descendentes dele em nosso país. Esse breve texto ajuda a preencher a enorme lacuna de textos de qualidade em história da psiquiatria no Brasil.Um dos aspectos que chama a atenção no trabalho de Pinel diz respeito à sua crítica à postura dogmática, cômoda e vaidosa de muitos médicos, o que, muitas vezes, impediria o real desenvolvimento da me...