O desgarramento foi postulado por Decat (1999, 2011), com base numa análise funcional-discursiva, afirmando que algumas orações entre as tradicionalmente chamadas de ‘subordinadas’ pela tradição gramatical podem ocorrer soltas ou sozinhas. Instigado pelo fenômeno, este artigo realiza uma descrição prosódica de orações desgarradas e correlaciona-a a reflexões referentes aos fraseamento prosódico no Português do Brasil. Para isso, leva em conta resultados de Tenani (2002) e Serra (2009), concernentes à estrutura entoacional de orações adverbiais e aos correlatos acústicos do fraseamento no PB, respectivamente, que revelam ser o contorno entoacional L+H*H% relativo a sintagmas entoacionaisn (IPs) hierarquizados e a pausa ser a pista mais robusta no fraseamento de IPs. Foram analisados os parâmetros acústicos duração, pausa e contorno de F0 em 900 orações adverbais – 450 anexadas à oração matriz e outras 450 lexicalmente idênticas, desgarradas, produzidas por cinco informantes oriundas do estado Rio de Janeiro. Os resultados demonstram que a maioria das orações adverbiais produzidas em conjunto com a oração matriz foram delimitadas por contornos melódicos com fronteira baixa (72,7% dos dados - 38,5% de L+H*L% e 34,2% de H+L*L%), ao passo que o contorno L+H*H% esteve presente em 27,3% delas. No que se refere às orações desgarradas, completas, o contorno L+H*H% foi majoritariamente produzido (83,5%). Com isso, postula-se que o contorno L+H*H%, referido como “continuativo” na literatura de base prosódica (Gonçalves 1997; Cunha, 2000; Tenani 2002) só traria a ideia de continuidade quando o IP for fraseado sem a saliência de outra pista prosódica.
Neste artigo, estuda-se o comportamento prosódico de orações adverbiais desgarradas no Português Brasileiro (PB) e no Português Europeu (PE), sendo utilizados o arcabouço teórico da Fonologia Prosódica (Nespor; Vogel, 1994) e da Fonologia Entoacional (Pierrehumbert 1980, Ladd 1996). Foram analisados 1800 dados de leitura (900 de cada variedade do português) e feitas aferições de duas pistas prosódicas: contorno melódico e duração das sílabas no fim do sintagma entoacional (IP). Os resultados revelam que o desgarramento na língua falada parece ser licenciado, primordialmente, tanto em PB quanto em PE, pela maior duração nas sílabas finais do IP. Para o PB, além da variação fonética dada pelo comportamento duracional das últimas sílabas do IP, o desgarramento é caracterizado por um padrão melódico diferente do verificado nas orações adverbiais anexadas à oração núcleo (majoritariamente, L+H*L% para as não desgarradas e L+H*H% para as desgarradas), o que sugere o fato de, para além da variação fonética, o fenômeno constituir um padrão fonológico diverso no português brasileiro.
Decat (1999; 2009; 2011) postula o fenômeno do desgarramento e afirma que o uso de estruturas “soltas” funciona como estratégia de focalização para atender a objetivos comunicativos e discursivos, sendo comparável à topicalização e à clivagem. Com base nisto, este trabalho objetiva averiguar se estruturas desgarradas apresentam pistas prosódicas que as assemelhem às já descritas para tópicos e clivadas no Português do Brasil, fornecendo evidência fonológica à estratégia sintática. Para tal, são utilizados os pressupostos teóricos da Fonologia Prosódica (NESPOR; VOGEL, 1986) e da Fonologia Entoacional (PIERREHUMBERT, 1980; LADD, 2008) e analisadas gravações feitas com base em exemplos retirados de Decat (2011). A análise, feita no programa computacional PRAAT (BOESMA; WEENICK, 2015), verificou os parâmetros acústicos de frequência fundamental (F0), pausa e duração em estruturas desgarradas e em estruturas anexadas formalmente à oração matriz, a fim de que se pudesse proceder à comparação dos dados. Os resultados revelam que o “contorno final” e a presença de pausa, descritos por Decat (2011) como possivelmente caracterizadores de cláusulas desgarradas, são traços comuns em todas as estruturas analisadas e não evidenciam, fonologicamente, o desgarramento. Entretanto, uma maior duração das pausas antes das desgarradas pode ser indício de uma estrutura sintaticamente diversa.
Com base em uma abordagem funcional-discursiva, que considera a ideia de língua em uso e a função comunicativo-interacional da linguagem, levando em conta fatores pragmáticos e não só estruturais, a noção de subordinação é revista. Segundo tal abordagem, as orações denominadas subordinadas pela tradição envolveriam dois grupos distintos: 1) encaixadas: aquelas que são dependentes e que desempenham um papel gramatical em constituência com um item lexical, grupo no qual se encontram as tradicionalmente chamadas substantivas e adjetivas restritivas; 2) hipotáticas: aquelas que são dependentes e que representam opções organizacionais para os falantes, das quais emergem proposições relacionais (inferências), podendo constituir, elas mesmas, unidades de informação à parte, grupo no qual se encontram as tradicionalmente conhecidas como adjetivas explicativas e adverbiais. Segundo considerações de Decat (1999), as estruturas de hipotaxe, cláusulas menos dependentes e que, portanto, podem formar uma unidade de informação à parte, estariam propensas ao desgarramento, ou seja, teriam a possibilidade de ocorrerem, sintaticamente, independentes na língua:
A obra reúne o resultado da tese de Silvestre (2017) e de considerações de alguns estudos posteriores, realizados pela autora, sobre a prosódia de tradicionais orações "subordinadas" que ocorrem sozinhas (desgarradas). Nela, é apresentada uma análise que se fundamenta na busca por pistas prosódicas que permitem o entendimento (e a existência!) das ditas orações desgarradas na língua falada. As reflexões realizadas estão alicerçadas na premissa de que é a Fonologia (e não a Sintaxe) o componente da gramática essencial para a desambiguação e estruturação de orações. O fator primordial para a existência de orações sintaticamente desgarradas passa a ser, então, que elas constituam um sintagma entoacional (IP) bem formado.
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