Em literatura, a morte é uma construção, a representação de um conceito abstrato. Num cenário mimético, os mortos são incapazes de falar e, certamente, incapazes de escrever livros. No entanto, vozes defuntas têm sido usadas durante séculos para contar histórias, desde a herança grega dos Diálogos dos Mortos, de Luciano de Samósata (século II d.C.), passando pelas Memórias Póstumas de Brás Cubas, do brasileiro Machado de Assis (1881), até aos nossos dias. Através da lente do fantástico, este artigo analisa o uso da narração póstuma ficcional no romance A Varanda do Frangipani, do autor moçambicano Mia Couto, que desafia as convenções narrativas de verisimilitude, ao apresentar uma figura impossível de qualificar de acordo com as leis naturais. Questiono o motivo pelo qual uma voz defunta é mais apropriada para contar uma determinada história, e contesto as limitações da definição de fantástico de Tzvetan Todorov, contrapondo-as com a abordagem mais abrangente de Rosemary Jackson ao fantástico enquanto um tipo de literatura capaz de transmitir mais precisamente o estranho sentimento de deslocalização em relação a certos sistemas políticos e sociais. Sublinho o potencial da narração póstuma enquanto meio de pôr a descoberto e debater temas contemporâneos relevantes de identidade pessoal, política e social, pois, enquanto figura transcendente, este defunto tem a autoridade de revelar a verdade e confessar segredos sobre a sua vida e a dos que o rodeiam. A morte proporciona uma plataforma segura para contar um lado da história das guerras vividas em Moçambique que tinha mantido em silêncio enquanto estava vivo, ao mesmo tempo que lhe permite adquirir postumamente conhecimentos sobre a realidade do seu país e da sociedade em que se insere.
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