No presente artigo intento mostrar a intrínseca relação entre a percepção musical e a agência corpórea desenvolvida na prática da dança do ventre, lançando mão de instrumental teórico da etnomusicologia e da antropologia. Em seguida, procuro pensar como a experiência de escuta musical na dança do ventre, que envolve o corpo como um todo, se desenvolve e produz efeitos entre as praticantes da dança. Essas reflexões são precedidas por uma breve ponderação que situa os corpos envolvidos numa cena específica – a cidade de São Paulo – demonstrando em que medida essa localização particulariza o processo da dança em comparação a outros lugares do mundo onde é disseminada.
Neste artigo, apresento a cena da dança do ventre em São Paulo discutindo seu status artístico e seus meios de sustentabilidade. Embora globalmente conhecida, o que interessa, neste momento, é o exame da prática dessa dança em sua localidade. Concordo com a noção disseminada por Roland Robertson (1992; 1995) de “glocalização”, reconhecendo seu mérito em restituir à globalização a sua realidade multidimensional. A interação entre global e local evitaria que a palavra “local” definisse apenas um conceito identitário, contra o “caos” da modernidade, considerada dispersiva e tendente à homologia. Assim, podemos pensar que repertórios globalmente disseminados podem perfeitamente abarcar características locais.
Dentre os temas veementes nos debates etnomusicológicos contemporâneos, as relações entre música e memória, em especial as recriações musicais, têm propiciado um terreno fértil para reflexões. É nesse campo de discussões que se insere este artigo, que parte de uma recriação musical produzida em esforço conjunto entre pesquisadora e sujeitos etnográficos para elaborar algumas reflexões. Refiro-me ao Baile para Matar Saudades, uma festa dançante realizada em Campinas, em 2014, com o objetivo de reproduzir os bailes negros dos anos 1950 no interior de São Paulo. Lançando mão das imagens desse evento, de sua preparação e de outros fazeres musicais de meus interlocutores no presente, realizei um longa metragem homônimo, como forma de disseminação da pesquisa. Na etnomusicologia, assim como na antropologia, a questão das formas de representação e expressão nativa levantam desafios, por se tratar também um campo de natureza etnográfica. O desenvolvimento desses assuntos pela antropologia visual serve de igual forma às etnografias interessadas nas interações humanas mediadas pela música, por razões que vão desde as possibilidades extratextuais de expressão da dança e da música até o diálogo etnográfico e a representatividade dos sujeitos em campo. O escopo último deste artigo, portanto, é discutir os papéis da realização fílmica numa pesquisa interessada na emersão de memórias através da recriação musical.
scite is a Brooklyn-based organization that helps researchers better discover and understand research articles through Smart Citations–citations that display the context of the citation and describe whether the article provides supporting or contrasting evidence. scite is used by students and researchers from around the world and is funded in part by the National Science Foundation and the National Institute on Drug Abuse of the National Institutes of Health.