O artigo parte de uma "cena etnográfica" com migrantes estrangeiros em um escritório de advogado para discutir a função que os documentos migratórios exercem sobre o parentesco no movimento transnacional. Por meio dela, evidencia como o Estado e o Direito disciplinam essas relações e como os próprios migrantes, usando a lógica jurídica da produção documental, elaboram a si mesmos como pessoas, em resistência ao poder estatal. A partir dessa experiência, chamada aqui de parentesco de papel, propõe-se uma reelaboração do conceito de documento, abrangendo tanto a agência burocrática quanto aquela dos sujeitos da documentação.Paper Kinship: Law, Power and Resistance in an Ethnographic Scene with Foreign Migrants starts from an "ethnographic scene" with foreign migrants in a lawyer's office to discuss the role that migratory documents play on kinship in the transnational movement. By doing this, it highlights how the state and the Law discipline these relations and how migrants themselves, using the legal logic of documentary production, elaborate themselves as persons, in resistance to state power. Based on this experience, named here as paper kinship, a reelaboration of the concept of document is proposed, encompassing both the bureaucratic agency and that of the subjects of documentation. Palavras-chave: parentesco, migração, documentos, antropologia do Direito, antropologia do Estado Keywords: kinship, migration, documents, anthropology of law, anthropology of the state que o movimento faz e o que dele é feito quando os espaços por que passa são os dos territórios nacionais e quem se movimenta são pessoas? Em traços bem largos, é isso que pesquiso no trabalho de campo com migrantes estrangeiros ora residentes na cidade de São Paulo. Quero partir do que chamei de uma "cena etnográfica" para endereçar algumas das questões com as quais venho me deparando na pesquisa. Elas dizem respeito principalmente a um cruzamento entre Estado, Direito, parentesco e mobilidade, que se divisa por meio da confecção, do exame, do manejo e do arquivamento dos documentos desses migrantes. Antes de apresentar a cena selecionada, contudo, é necessário fazer algumas observações sobre o que entendo por cena etnográfica e também sobre como construí essa categoria a partir dos meus dados. Começo por estes últimos. Os dados que mobilizo aqui foram colhidos principalmente no Centro de Referência e Atendimento ao Imigrante (Crai) do município de São Paulo. O Crai é um aparelho público instituído, junto de outras políticas públicas endereçadas à população imigrante, pela lei municipal n o 16.478/2016, sendo gerido atualmente por uma organização da sociedade civil, o Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras). Entre os serviços prestados pelo Crai estão o apoio especializado e multilíngue para imigrantes, centrado em orientações sobre regularização migratória e acesso a direitos sociais, o encaminhamento de denúncias por violação de direitos humanos, a orientação pelo O