Da interdição civil à tomada de decisão apoiada: uma transformação necessária ao reconhecimento da capacidade e dos direitos humanos da pessoa com deficiência

Abstract

Este artigo aborda o impacto jurídico e social da internalização, no Direito Brasileiro, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD, 2008) e sua regulamentação - por meio da Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência (LBI). O foco da análise será o reconhecimento da capacidade e da efetividade dos direitos humanos das pessoas com deficiência e seus reflexos nos institutos jurídicos da curatela e da interdição civil. Para tal, realizou-se pesquisa bibliográfica e documental e, a partir da teoria de justiça social, pautada pelas capacidades, de Martha C. Nussbaum, e da crítica dos direitos humanos, de Joaquín Herrera Flores, buscou-se verificar se os Tribunais de Justiça brasileiros têm aplicado a CDPD, pois, em tese, quanto maior a adesão à Convenção, maior o reconhecimento da autonomia e da capacidade das pessoas com deficiência; e, logo, menor o número de processos judiciais de interdição civil. Os resultados obtidos, por meio da análise dos dados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, relativos aos anos de 2010 a 2014, contudo, indicam outra direção.

Interdição e medicalização de pessoas com transtornos mentais: estudo de caso do documentário Britney X Spears

“…Sob esse aspecto, os autores afirmam que a curatela funciona a partir de uma ótica que prioriza a incapacidade do indivíduo à sua funcionalidade. Nesse sentido, pessoas com transtornos mentais são inseridas em uma configuração social na qual, mesmo se deparando constantemente com impedimentos sociais e civis, não são atendidas de forma a se integrarem efetivamente no ambiente (Alencar, Assis & Musse, 2016). De acordo com os mesmos autores, por essa razão a curatela pode reforçar a percepção da pessoa em sofrimento psíquico automaticamente associada à incapacidade, mesmo sendo necessária a avaliação de potencialidades de autonomia em cada caso.…”

“…Assim, baseada em um modelo social que estigmatiza as pessoas com deficiência como já incapacitadas, a curatela acaba por desempenhar um papel de discriminação (Alencar, Assis & Musse, 2016). Os mesmos autores aprofundam esta discussão, ao inserir a curatela em uma sociedade reforçada de mecanismos mais ou menos explícitos de opressão e exclusão dos deficientes.…”

“…As questões apontadas abrem a discussão para possíveis falhas no processo da interdição que embasam a perpetuação do olhar estigmatizante sobre as psicopatologias, sejam elas da ordem de transtorno mental ou não, como no caso de pessoas com deficiência. Ao se tratar da ordem do transtorno mental, primeiramente se exprime a inflexibilidade da legislação que, ao desconsiderar ou não aprofundar a individualidade de cada caso, pode limitar a capacidade de escolha e a autonomia por meio do reducionismo da pessoa com transtorno mental ao seu diagnóstico (Alencar, Assis & Musse, 2016). Nesse campo, pode ser mencionado o risco de interferência de uma subpolítica médica 9 por meio dos laudos, frequentemente envolvida em processos de judicialização, que assegura interesses econômicos e (sub)políticos.…”

“…Esses exames periciais possibilitam respaldar cientificamente verdades enunciadas pelo Poder Judiciário (Leão & Ianni, 2020). No caso da curatela, é possível observar o complexo atuante no reforço e na perpetuação de uma noção incapacitante e estigmatizada das pessoas com transtornos mentais, o que envolve o exercício da judicialização, de preconceitos sociais e de dispositivos médico-jurídicos (Alencar, Assis & Musse, 2016;Leão & Ianni, 2020).…”

“…Visto isso, para a análise do fenômeno da judicialização, especificamente em transtornos mentais, deve-se considerar a defasagem histórica das pessoas em sofrimento psíquico enquanto sujeitos de direitos e deveres. Além disso, como já retratado no âmbito da atuação do saber médico nos processos judiciais, é necessário atentar também sobre a possibilidade de fabricação de verdades a respeito de pessoas com transtornos mentais (Alencar, Assis & Musse, 2016;Leão & Ianni, 2020). Como relatado por (Carvalho & Perucchi, 2016), ainda há um distanciamento entre as diretrizes da reforma psiquiátrica e as práticas da justiça, especialmente no âmbito da cidadania, e a curatela ilustra isso.…”