O artigo apresenta o impacto populacional provocado pela epidemia de sarampo (1748-1750) na capitania do Grão-Pará e sua relação com o processo de inserção da mão de obra escrava africana. A análise é fundamentada na documentação produzida no século XVIII, levantada em diferentes arquivos brasileiros e portugueses, incluindo correspondências oficiais, crônicas, memórias, mapas populacionais e listagens de mortos pela epidemia. A documentação serial foi posta em base de dados, construída a partir das 80 listagens de mortos pelo sarampo, o que permitiu uma análise do impacto demográfico da epidemia. Concomitantemente, a contagem populacional das vilas e povoações da capitania, do terceiro quartel do século XVIII, compôs uma segunda base de dados e auxiliou na compreensão da distribuição interna de escravos africanos. O ponto de interseção entre as bases de dados é formado pelo conjunto da documentação histórica administrativa, que trata dos efeitos da epidemia e das possibilidades de solução da crise de mão de obra -ocasionada pela alta mortalidade de indígenas. O estudo procura mostrar não apenas a mortalidade causada pelo sarampo, mas também a construção de uma política para a inserção de escravos africanos na região. Para tanto abordam-se a epidemia em Belém, a importância do trabalho indígena para os colonos, o número de mortos e a distribuição da mortalidade considerando espaço e sazonalidade (meses e anos). Também se discutem a luta entre projetos para sanar a demanda de mão de obra, gerada pela alta mortalidade do sarampo, e a política de inserção de escravos africanos para combater a carência de trabalhadores, bem como a distribuição desses escravos na capitania.Palavras-chave: Sarampo. Índios. Escravos. Amazônia. Grão-Pará * Universidade Federal do Pará -UFPA, Belém-PA, Brasil (otaviano@ufpa.br). ** Universidade Federal do Pará -UFPA, Belém-PA, Brasil (robertasauaia@hotmail.com).
294R. bras. Est. Pop., Rio de Janeiro, v. 32, n.2, p. 293-311, maio/ago. 2015Epidemia de sarampo e trabalho escravo no Grão-Pará (1748-1778 Vieira Junior, A.O. e Martins, R. S.
Epidemia de sarampoEpidemias marcaram a história do contato entre a população autóctone da América e europeus, tornando-se um dos fatores que explicam a diminuição significativa da população americana original (LIVI-BACCI, 2001;GUERRA, 1993;DOBYNS, 1966). Na Amazônia colonizada pelos portugueses não foi diferente. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, a região deparou-se com diferenciados cenários epidêmicos (1649-1652, 1661-1662, 1690, 1724-1725 e 1737-1740), o que interferia na própria organização produtiva, pois afetava o trabalho compulsório e a composição demográfica das áreas atingidas (CHAMBOULEYRON et al., 2011;GUZMÀN, 2012).Entre 1748 e 1750, mais uma epidemia aportou no Estado do Maranhão e Grão-Pará. 1 Esse surto ficou conhecido por "sarampo grande", agregando um adjetivo que destacava sua força quando comparada com epidemias anteriores, como bem deixou registrado o tenente Teodosio Chremont: [...] foram vistos lugares naquele rio (Rio Branco) que...