Judicialização e subpolítica médica

Abstract

Resumo O objetivo deste artigo é discutir o fenômeno da judicialização e a subpolítica médica na contemporaneidade. A judicialização é identificada como o envolvimento do Poder Judiciário na esfera política na tutela de interesses individuais, como uma interferência no planejamento das políticas públicas. As decisões judiciais acabariam definindo políticas, à margem do modelo democrático da modernidade industrial. Diversas pesquisas defendem que o Judiciário tende a atender estas demandas, evocadas sob o fundamento da garantia da saúde e vida, abalizadas pelas normas de direito constitucional à saúde e profissionais médicos. Mas a judicialização pode ser também caracterizada como eco de um processo reflexivo da modernidade, no qual direitos fundamentais estabelecidos potencializam uma nova cultura política. Os cidadãos utilizam meios não tradicionais de intervenção e controle público e judicial, buscando defender seus interesses e direitos. O próprio fundamento fático das demandas é construído reflexivamente pelo saber médico, impermeável a formas tradicionais de controle externo. Isto gera uma judicialização pautada pela medicina e favorece a expansão do campo de atuação médica, e do mercado e pesquisa para a indústria médico-hospitalar e farmacêutica. Tanto sociedade como Estado acabam sendo obrigados a recorrer a normas e conhecimentos medicinalmente constituídos e monopolizados, em uma estratégia reflexiva de mercado.

Interdição e medicalização de pessoas com transtornos mentais: estudo de caso do documentário Britney X Spears

“…No processo de curatela, por exemplo, esse poder é observado por saberes médicos serem determinantes sobre os juízes e suas decisões, já que somente outra opinião médica poderia refutar um laudo. (Leão & Ianni, 2020). Mesmo preconizado pela lei nacional a obrigatoriedade de uma entrevista do interditando com o juiz, a possibilidade de uma prova pericial envolve o parecer de uma equipe multidisciplinar, 9 O conceito de subpolítica médica será abordado na categoria de medicalização deste estudo.…”

“…A exemplo disso tem-se as requisições das avaliações, as quais possuem quesitos já previamente solicitados pelo juiz a serem respondidos. Esses exames periciais possibilitam respaldar cientificamente verdades enunciadas pelo Poder Judiciário (Leão & Ianni, 2020). No caso da curatela, é possível observar o complexo atuante no reforço e na perpetuação de uma noção incapacitante e estigmatizada das pessoas com transtornos mentais, o que envolve o exercício da judicialização, de preconceitos sociais e de dispositivos médico-jurídicos (Alencar, Assis & Musse, 2016;Leão & Ianni, 2020).…”

“…Da mesma forma, a dimensão da saúde também é hipervalorizada a partir da individualização e do modo de produção exigido na Pós-Modernidade, que, conforme suas alterações, sobretudo no estilo de vida, impacta também o já estabelecido legalmente no Estado (Nico, Leonardi & Zeggio, 2016;Leão & Ianni, 2020;Veloso, 2021). De acordo com os mesmos autores, uma vez que o conceito de saúde e doença são socialmente estabelecidos, o adoecer passa a ser considerado anormal e inoportuno; nesse contexto, portanto, é considerado responsabilidade do indivíduo evitá-lo a qualquer custo.…”

“…A medicalização é entendida como fruto de um dinamismo em que problemas não médicos se tornam problemas médicos, o que pode decorrer da flexibilização dos critérios diagnósticos e ocasionar outros fenômenos, como o encontro da solução no manejo de medicamentos ou outras intervenções médicas 4 (Oliveira & Martins, 2020). Nesse cenário pós-moderno, essa ampliação passa a ser, então, um instrumento de poder sob o domínio da medicina e da indústria farmacêutica (Soalheiro & Mota, 2014;Barison & Gonçalves, 2016;Almeida, 2018;Leão & Ianni, 2020). Assim, problemas não médicos são incorporados às concepções patológicas e exigidos novos tratamentos.…”

“…No indivíduo vulnerável aos riscos derivados das características da sociedade pósmoderna -sobretudo de transtornos mentais, como depressão e bipolaridade (Nico, Leonardi & Zeggio, 2016;Viapiana, Gomes & Albuquerque, 2018) -a medicalização encontra seu nicho junto à ampliação do patológico. Assim, a ampliação diagnóstica baseia-se no reducionismo biologicista do indivíduo e no controle social decorrente do exercício médico, o qual desempenha um importante papel dentro do contexto judiciário (Soalheiro & Mota, 2014;Almeida, 2018;Viapiana, Gomes & Albuquerque, 2018;Leão & Ianni, 2020).…”