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Renato Sztutman UNIFESP "Ce poison va rester dans toutes nos veines même quand, la fanfare tournant, nous serons rendus à l'ancienne inharmonie." (Arthur Rimbaud, Illuminations)A história de Hans Staden, na metade do Quinhentos, todos conhecemos: viajante alemão, confundido com um português, fora aprisionado por um grupo de indígenas ditos Tupinambá, habitantes da costa brasílica e aliados dos franceses. Logo no momento de sua captura, dada sorrateiramente em algum lugar não muito longe de São Vicente, o viajante tomava conhecimento do destino de um cativo de guerra:Enquanto discutiam, fiquei ali rezando a Deus e esperando pelo golpe. Enfim, o chefe decidiu que desejava conservar-me vivo. Eu seria levado com vida até a sua aldeia, para que as mulheres também pudessem ver-me e tivessem seu momento de diversão às minhas custas. Depois tinham a intenção de me matar a cauim pepica, o que quer dizer que desejavam preparar uma beberagem e reunir-se para uma festa, no decorrer da qual eu devia servir de alimento. Com isso, todos deram-se por satisfeitos (Staden 1998(Staden [1557:57).Staden seria devorado por aqueles selvagens, que logo o despiam e o ameaçavam com gestos e armas. Eles preparariam, para tanto, uma grande festa, regada de uma certa bebida fermentada, feita no mais das vezes de mandioca ou de milho, e que causava grande embriaguez quando consumida em excesso. Os indígenas chamavam essa cerveja de cauim, e faziam dela uma peça necessária na maior parte de seus rituais e encontros festivos -hábito, aliás, que se encontra até os dias de hoje entre muitos povos ameríndios, dentre eles, aqueles que falam línguas da família tupi-guarani. Com efeito, Staden foi tomando consciência, ao longo de seu cativeiro, que a devoração dos inimigos exigia uma forte alteração de comportamento, que envolvia, entre outras coisas, a embriaguez. Embriagados, os indígenas alcançavam o ápice de seu ritual antropofágico: um deles, especialmente designado, executava, a um só golpe, o inimigo de guerra,
ARTIGOStrazendo, assim, alegria para os participantes da festa e, sobretudo, honra e glória a si mesmo. Em outras palavras, para introduzir um grande tema do americanismo tropical, faziam desse evento de predação do inimigo a própria produção da vida social.
E C O S D O Q U I N H E N T O SO destino do cativo de guerra e o ritual que o consumava tornavam perplexo, no Quinhentos, o olhar dos viajantes sobre a humanidade dos gentios. Em primeiro lugar, estes se mostravam vorazes canibais: grupos que falavam línguas próximas e que partilhavam a mesma ética e cosmologia devoravam-se sem piedade, alimentando sentimentos de vingança transmitidos a cada nova geração. E como se não bastasse esse costume, os indígenas viviam a se embriagar de cauim, a mesma substância que não podia estar ausente nos seus festins antropofágicos, visto que parecia aguçar o desejo de comer carne humana e propiciava algo como uma sensação de plenitude. Aos olhos dos viajantes, faltavam aos indígenas tanto um poder centralizado como a capacidade pessoal de se cent...