A vida, às vezes, é amarga como khrein, dramática como a rouquidão de um hazan em Iom Kipur, preciosa como um samovar no inverno, mas também equina como nas duas histórias a seguir: O cavalo mongol IItzi Dubnov tinha sido carroceiro, profissão considerada inferior no shtetl de Kransk, mas, aos 25 anos, casara-se com Peshe, já velhusca, feia e única herdeira de rebe Falik.Com o capital da esposa, tornou-se revendedor itinerante dos famosos gumes Zabialov (canivetes, facas, machados etc.).Embora Peshe não visse com bons olhos sua constante ausência do lar, inclusive durante o shabat, acabou por se orgulhar da súbita argúcia mercantil do marido, que ia amealhando dinheiro num esconderijo do forro.Peshe mal saía de casa para vigiar o pecúlio; filhos, o maior tesouro, não possuíam. O grande sonho de Itzi era abrir uma loja, com vitrinas, para expor os reluzentes metais. IINo outono, pouco depois de Sucot, o cavalo Piatak (moeda de cinco copeques), que transportava os Zabialov de cidade em cidade, passou por uma dacha, onde contemplou uma bela égua, branca como ele, atrás de uma cerca. Na noite chuvosa e fria, intranquilo, com o pensamento na fêmea quadrúpede, fugiu em desabalada carreira atrás de seu impulso.Porém, próximo à casa de campo, resvalou na lama, tropeçou numa grande pedra e caiu de um barranco.
Mordechai voltava de um abate de galinhas, em Roitberg, guiando sua carroça, quando percebeu uma face pregueada e farrapos, que lhe acenavam no caminho. O schohet aproximou-se, cauteloso: era uma velha, que logo lhe rogou condução até o shtetl de Tsots, fim da estrada. Mordechai, piedoso, sentou-a na boleia, e partiram. O hálito da anciã era repugnante, por isso, o shohet não se animou a conversar. No meio da viagem, porém, a curiosidade foi maior: Mordechai perguntou-lhe, discretamente, quem era e o que fazia. A velha, fitando-o com seus olhos de febre (a cabeça de um rato pulguento emergindo do bolso), respondeu: -Venho da batalha, onde cadáveres se amontoam sob as estrelas. Sou a Peste. O condutor, horrorizado, quis apeá-la imediatamente, mas a idosa disse: -É inútil. Mesmo me arrastando no pó deste caminho, chegarei a Tsots. Além disso, quero recompensar sua gentileza. Peça alguma coisa! Mordechai, um pouco mais tranquilo, falou: -A vida de Tsots, onde nasci e moro.-Impossível! Contestou a velha. Não posso deixar o povoado intacto! Mas, para ser razoável, me diga quantos devo matar. -Duas pessoas.-É muito pouco. -Dez. -Ridículo! -Vinte. -Sessenta, não mais que sessenta. É minha última oferta. -Aceito contrariado... Mas escolherei as pessoas, certo? -Sim. -Então vá anotando: primeiro, o rebe Fucs, que tem 90 anos e está mesmo ansioso para se encontrar com o Eterno. Depois, minha tia Zissl, que vive lamentando sua cegueira. E o velho Moishele, "gabai", que trabalha gemendo o reumatismo. E Shlomo... Mordechai, durante meia-hora, descreveu à Peste suas sessenta vítimas. Depois exclamou, penalizado: -Quantos corações eu apontei para a Morte! -Parece que se esqueceu de suas execuções diárias, disse a velha ironicamente. -Mas são galinhas! -Seres vivos também, perante o Criador.
São Paulo, 26 de maio de 1980 Venerado "Rebe" Yehoshua:Soube, pela revista "Rumos Hebreus", que pretende escrever uma biografia de Elihau, o Justo, figura quase lendária do Hassidismo. Tive o privilégio de cruzar, em meu humilde destino, com o maravilhoso "rebe". Se, conforme diz o "Talmud", em cada geração no mundo há sempre 36 justos, sobre os quais repousa a presença divina, Elihau, sem dúvida, foi um dos "lamed-vav". Acho que seria de algum auxílio para o seu livro que eu contasse como conheci o "tzadik" Elihau, no verão de 1915, quando canhões distantes soavam a Primeira Guerra. Mas em Dubetchnya, "shtetl" onde eu morava com minha família, havia muita paz. Os "huligans" do czar, preocupados com a guerra, esqueciam dos pogroms, e podíamos respirar melhor. Eu era muito jovem e ajudava meu pai a plantar peras, que minha mãe transformava em compota, vendida na feira. Certa vez, minha tia grávida começou a sentir fortes dores e, como o único médico da povoação estava viajando, meu tio pediu que eu montasse em Cum Avek e fosse até Kurilovka atrás do Dr. Shimen. Ele mesmo não foi, pois era desertor do exército e se escondia no sótão. No meio do caminho, encontrei um coxo, chamado Roiter (era ruivo), que me pediu carona: éramos judeus e íamos na mesma direção. Fiquei com dó do homem, que andava juntando o cisco da estrada, e concordei. Durante o trajeto, ele tirou "beiguelah" de sua sacola e me ofereceu, como gratidão. Também me deliciou com algumas anedotas sobre Chelem, cidade dos tolos, e histórias de Hershel Ostropólier. Formei uma boa imagem de Roiter em meu coração e, ao chegarmos a Kurilovka, desci primeiro de Cum Avek, a fim de ajudá-lo a apear. Mas o coxo não quis, dizendo que estavam na terra de Elihau, o Justo, e o cavalo ficaria com ele. Não entendi sua afirmação, pedindo que a explicasse. Então o ruivo falou que se Elihau, o Justo, me visse de sólidas pernas jovens, e ele coxo, lhe deixaria com o cavalo.
1Névoa tenra, um carroção rubro parou na única praça de Busken, dele apeando dois tipos esguios. Os cavalos começaram a tosar a grama do canteiro, enquanto os homens espancavam um grande tambor. O povo abandonou suas casas de madeira perfumada e se aglomerou ao redor do carroção. O rabino deixou o Talmud na mesa e correu para espiar. Mulheres enxugavam as mãos ensaboadas nos aventais e abriam os grandes olhos expectantes. O relojoeiro esqueceu um cuco, de tripas de fora, e foi dilatar a onda de curiosidade. Crianças fugiam da escola: os inspetores também saboreavam o fato novo. O esguio mais velho, que parecia o chefe, primeiro cumprimentou os cidadãos de Busken, dizendo que a névoa local era a mais bela do país. Depois falou, grifando certas palavras, que tinha sido enviado pelos bons anjos, para acalmar a tristeza de seus semelhantes. Que inferno supera o vácuo de um morto amado? Nenhum: nem a fome, pogroms ou furúnculos. Alguns risos cariados cessaram, quando um raio de sol, furando a névoa, veio aureolar o esguio.Aproveitando o efeito luminoso, o homem se propôs a -nada mais, nada menosressuscitar os defuntos do mui digno shtetl de Busken. Um frêmito de admiração correu todas a espinhas, espocando num oh! geral. O juiz quase derrubou o pincenê do nariz prolixo, ao ouvir a afirmação. Acercou-se dos desconhecidos (o esguio mais jovem abaixou a cabeça) e, com sua autoridade na voz, obrigou-os a uma explicação detalhada. Se ela não convencesse, as grades mais belas do país abrigariam dois dementes ou charlatães. O esguio grisalho reafirmou que prometia devolver a vida, dali a 3 semanas, a quaisquer cadáveres com até 10 anos de sepultura. (O coveiro-mor assoou o nariz, pensativo). Para enxugar dúvidas sobre suas intenções, pediu ao excelentíssimo juiz que fiscalizasse os ressuscitamentos, impedindo fraude ou fuga. Só desejavam, até o evento, negociar seus remédios infalíveis e corar os doentes. O juiz considerou castíssima a proposição, ratificada pela euforia geral e pelo sol que conseguia cavar a névoa. Nenhum olho foi contra. O obeso senhor Jablonski, num largo gesto de boa vontade, cedeu gratuitamente seu melhor quarto aos miraculosos.* Professor, escritor e roteirista. Publicou, dentre outros livros, Criminário, 2013, Cama de pregos aforismos de bolso -IV, 2013de bolso -IV, , e O bilhete do morto, 2017
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