Resumo No bojo do movimento de humanização do parto e nascimento no Brasil, doulas e educadoras perinatais vêm se apropriando de certos conhecimentos biomédicos e combinando-os a conhecimentos “tradicionais” ou “alternativos” em torno do parto. Na última década, muitas delas passaram a falar abertamente sobre violência obstétrica e a legitimar o direito das mulheres a narrar o sofrimento experimentado, compondo um outro referencial de cuidado, articulado a uma pedagogia reprodutiva contra-hegemônica. A partir de uma mirada interseccional, propomos pensar a doulagem associada à educação perinatal como prática de problematização dos pressupostos culturais mais gerais em torno dos quais se organizam as hierarquias reprodutivas vigentes e o modelo obstétrico hegemônico. Sugerimos que a presente contribuição permite ampliar o debate sobre governança reprodutiva para além do fundamento liberal do paradigma dos direitos sexuais e reprodutivos, de modo a acolher as premissas da luta por justiça reprodutiva.
O ensaio focaliza aspectos do processo histórico de transformação da experiência de parto no Brasil presentes em relatos de parto de mulheres de camadas médias urbanas. Neste cenário, que emerge no horizonte da crescente medicalização da gestação e da luta contra a violência obstétrica, o parto humanizado, pensado como um “laboratório moral”, surge como uma experiência profunda de conexão. O campo etnográfico aponta para a configuração de novas subjetividades femininas, maternas e feministas, mediadas pela tecnologia leve manejada pelas doulas e também pelos grupos de apoio a gestantes, articuladas em um imaginário cultural contra-hegemônico, centrado na potência desestabilizadora das capacidades reprodutivas femininas.
O artigo trata de um aspecto central do trabalho realizado pelas doulas e educadoras perinatais – profissionais que prestam apoio físico, emocional e informacional à mulher durante a gestação, o parto e o puerpério –, qual seja, a habilidade de estabelecer e sustentar um certo tipo de vinculamento com a mulher. A partir da pesquisa com doulas alinhadas à medicina baseada em evidências científicas que atuam em Brasília (DF), proponho que certos conceitos, imagens e afetos mobilizados por elas tensionam e desafiam a hegemonia dos valores que sustentam os protocolos adotados pelas instituições médico-hospitalares. O conceito de vinculamento (Latour, 2016) nos ajuda a perceber que, sob o aparente contrassenso de uma pedagogia do instinto feminino aplicada pelas doulas, viceja uma modalidade diferencial de cuidado, que pode ser condensada na expressão “mulheres que apoiam mulheres”, e que, em alguma medida, desestabiliza as tendências liberais, individualistas e hedonistas presentes no ideário da “humanização” do parto.
No presente artigo, analiso relatos de parto de mulheres negras vivendo nos Estados Unidos. Esses relatos descrevem várias formas de racismo durante encontros médicos que aconteceram enquanto elas estavam grávidas ou durante o trabalho de parto e o parto. Na arena global da saúde da mulher, os problemas levantados são vistos como violência obstétrica. Entretanto, racismo obstétrico – enquanto evento e ferramenta de análise – captura melhor as particularidades do cuidado reprodutivo dispensado às mulheres negras durante os períodos pré e pós-natal. O racismo obstétrico é uma ameaça para desfechos de parto positivos. Eu argumento que profissionais da assistência ao parto, incluindo parteiras e doulas, fazem a mediação entre o racismo obstétrico e desfechos reprodutivos estratificados.
Resumo1 Os dados apresentados foram reunidos durante a elaboração de minha tese de doutorado (Tempesta, 2009a; ver também Tempesta, 2009b).2 O termo "agência" (agency) tem a acepção de capacidade de ação, reflexão e sentimentos, conforme os trabalhos de M. Strathern e R. Wagner sobre povos na Melanésia e os antropólogos das Terras Baixas da América do Sul que neles se inspiraram para dar conta de
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