Como antropóloga (em vez de, por exemplo, filósofa) 1 meu objetivo é compreender e desvelar as visões de mundo de outras pessoas, em particular as dos povos indígenas da floresta tropical amazônica. A versão local que, por muitos anos, venho tentando entender pertence aos Piaroa, um povo que vive ao longo de tributários do rio Orinoco, na Venezuela. Sua subsistência baseia-se ainda hoje, principalmente, na horticultura, pesca, caça e coleta. São descritos por seus vizinhos como "os intelectuais do Orinoco", e eles realmente têm um pendor especial para o debate intelectual, particularmente quando estão em questão aspectos metafísicos da vida cotidiana. São também um dos povos mais pacíficos da Amazônia. Para tentar melhor compreender a paz que tanto prezam 2 , assim como seus modos informais e igualitários, tenho procurado recentemente focalizar o alto valor que os Piaroa conferem aos assuntos da vida diária, e sua conseqüente ênfase sobre a criatividade cotidiana. Com efeito, a maior parte da produção artística piaroa pertence ao domínio do cotidiano. A beleza e capricho dos implementos que fabricam para uso diá-rio, a atenção prestada à forma e ao design, são impressionantes. Seus belos instrumentos e artefatos exemplificam o esforço constante dos Piaroa em embelezar a maior quantidade possível de aspectos do seu dia-adia 3 . Os Piaroa atribuem a atividades que tendemos a ver como mera rotina (preparar uma refeição, limpar uma roça, trançar um cesto, alimentar um bebê) um significado bem maior, uma vez que seus principais interesses estão diretamente voltados para habilidades específicas essenciais à arte da vida diária. Tentarei, aqui, introduzi-los nesse mundo. Ao fazê-lo, procurarei mostrar como a arte do cotidiano piaroa está ligada a um princípio de confiança [trust], pois é apenas por meio da confiança que o cotidiano desse povo igualitário pode ser construído. De modo a contextualizá-la gostaria de comentar alguns escritos de filosofia moral que têm relevância considerável para nossos estudos antropológicos na Amazônia.