O Trieb de Freud como instinto 1: sexualidade e reproduçãoRichard Theisen Simanke resumo O conceito freudiano de "impulso", ou "instinto" (Trieb), é reconhecidamente um dos conceitos mais fundamentais da psicanálise. No entanto, seu sentido ainda é objeto de controvérsia. Originalmente definido por Freud em um sentido biológico ou quase biológico, sua recepção em muitas das diversas tradições pós-freudianas tendeu, frequentemente, a recusar essa filiação epistemológica inicial. Um dos sinais dessa reorientação doutrinária é a recusa da tradução de "Trieb" por "instinto" e a preferência pelo neologismo "pulsão", de origem francesa e comum na literatura psicanalítica escrita em várias das lín-guas neolatinas, inclusive em português. O objetivo deste artigo é criticar essa tendência. Para tanto, são examinados os principais argumentos normalmente apresentados contra uma visão biológica do Trieb freudiano, a saber, 1) a alternativa terminológica entre os termos alemães "Trieb" e "Instinkt" e o modo como estes são utilizados por Freud; 2) a crítica freudiana de uma redução da sexualidade humana à função reprodutiva; 3) o conceito de "Todestrieb" ("instinto de morte" ou "pulsão de morte") formulado por Freud por volta de 1920 e central na etapa final de seu pensamento. Procura-se argumentar que essas formulações não impedem uma interpretação biológica do conceito de "Trieb". Essa interpretação, por sua vez, abre uma via de diálogo entre a psicanálise e a biologia, a qual é também enfática e explicitamente defendida por Freud. Esta primeira parte do trabalho introduz a questão e também aborda o problema da relação entre sexualidade e reprodução na psicanálise e na biologia. Uma segunda parte, a ser publicada em uma próxima edição de Scientiae Studia, será dedicada ao problema da agressividade e da autodestrutividade nessas duas áreas do conhecimento.Palavras-chave • Freud. Psicanálise. Metapsicologia. Instinto. Pulsão. Biologia. Morte. Sexualidade.
Por que o Trieb não seria instinto?A discussão sobre o sentido do conceito freudiano de "Trieb" tem sido uma constante dentro da história da psicanálise. Freud não parecia ver grandes problemas em atribuir-lhe uma significação e uma fundamentação biológica. Sua primeira dualidade instintual era explicitamente baseada na distinção entre o conjunto de funções bioló-gicas que servem à conservação da existência do indivíduo (para os instintos de autoconservação) e o conjunto de funções biológicas que servem à conservação da es- pécie (para os instintos sexuais) (cf. Freud, 1998(cf. Freud, [1910). 1 Como se vê, a palavra-chave nessa primeira teoria freudiana dos instintos era "conservação". Freud parecia, nesse momento, entender o instinto como uma espécie de conatus orgânico, a saber, um esforço, inerente ao ser vivo, para continuar existindo, quer individualmente, quer como espécie. O conflito -inclusive no plano psíquico, isto é, no plano do funcionamento mental impulsionado pelas motivações instintivas -resultaria da impossibilidade de conciliar perfeitamente as metas dessa...