Resumo: Neste artigo, buscaremos evidenciar a especificidade e os limites de uma consulta transcultural no Serviço de Psiquiatria do Hospital Avicenne (França) com sujeitos requerentes de refúgio, originários principalmente da África e Ásia do Sul, atendidos por distúrbios psicotraumáticos. Tratar-se-á de tentar mostrar que uma abordagem clínica, que leve em conta o contexto sociopolítico e a situação jurídica desses pacientes "migrantes", irá possibilitar a emergência da palavra do sujeito. A partir da construção de dois fragmentos de caso, mostraremos como as representações político-sociais acerca do "migrante", "refugiado", "vítima", "suspeito", deixam suas marcas concretas e simbólicas nos sujeitos bem como influenciam os modos de condução do trabalho clínico. Isso nos permitirá, em um segundo momento, questionar a noção de alienação. Por fim, iremos lançar uma proposição clínica que tem a finalidade de esvaziar o espaço da consulta em psicoterapia das amarras impostas pelas representações sociais que calam o sujeito.Palavras-chave: requerentes de asilo, sujeito, alienação, trauma, cultura.
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IntroduçãoEm um dia qualquer, em uma sala de audiência da Corte Nacional de Direito de Asilo (CNDA), enquanto o tempo reservado para a entrevista com o juiz se esvaía -e com isso toda a esperança de obtenção de recurso para sua solicitação de asilo -, Karan emudece. De origem tâmil do Sri Lanka, chegou à França há aproximadamente um ano, e nos conta que ele e sua família viveram os horrores de uma guerra sem fim, além disso, foi preso e torturado. Seu irmão foi sequestrado, e Karan sabe -em uma espécie de intuição que só aqueles que viram a morte de frente são capazes de sentir -que seu irmão é hoje um cadáver, que será encontrado mais dia, menos dia, "inchado como um peixe morto, boiando num riacho". Semprún (1994), sobre sua experiência nos campos, escreveu: "a morte não é algo de que tenhamos nos aproximado, esbarrado, e da qual tenhamos conseguido escapar…A morte, nós a vivemos". E esta experiência da morte não é "crível", nem algo que possamos compartilhar, nem "compreensível" (p. 121).Karan, diante do juiz, emudece. É incapaz de responder quando questionado. Seu amigo deixa a sala de audiência, para não assistir ao insuportável "desperdício" (waste) de um homem que assina sua condenação. "Por que você se recusa a cooperar?", repete o juiz. No entanto, Karan já habita outra dimensão daquela imposta pelo procedimento administrativo. O dispositivo jurídico, feito de perguntas e respostas, acaba por reativar as feridas deixadas pela tortura dos interrogatórios vividos por ele na prisão. Com seu silêncio Karan recusa cooperar? Seu silêncio é uma recusa a quê, exatamente? Ao processo e ao sistema jurídico como um todo? A menos que possamos pensar em * Autora correspondente: marieyat@hotmail.com seu silêncio como a expressão de um mecanismo de defesa contra o retorno da angústia, um modo de "defesa" último contra sua "aniquilação" 1 como sujeito?Ao chegar ao serviço de psicotraumatologia do Hospital Avicenne, depois da...