Cristiano Quaresma de Paula, autor desta obra denominada Geografias da Pesca Artesanal Brasileira, honra-me com este convite ao solicitar gentilmente que eu prefacie este tão significativo livro. Produto de sua tese de doutorado, defendida em 2018 e agraciada com a Menção Honrosa indicada pela CAPES em 2019, é, sem dúvida, uma pesquisa exemplar, que agora vem a público.
Cristiano, é justo informar, tem na pesca artesanal a história de sua vida. Filho de pescadores, que até hoje desenvolvem suas atividades no estuário da Lagoa dos Patos, estado do Rio Grande do Sul, viveu e vive essa atividade, conhecendo pela vivência os trâmites, os apetrechos, os percursos, os diálogos e as normativas, a vivência dos pescadores em tempos de conflitos, onde novas estratégias são necessárias para que estes pescadores possam ter garantido seu lugar de abrigo, seu lugar de produção e reprodução de suas vidas.
Esse tema acompanha Cristiano desde sua graduação ainda na FURG, prossegue no mestrado na UFRGS, acompanhando os pescadores do Delta do Jacuí. Dá continuidade no doutorado, nessa mesma instituição, agora em rede nacional, desvendando a produção, os conflitos e as formas de organização coletiva que articulam os pescadores em seus movimentos para manter seu direito à vida.
À medida que deu continuidade ao entendimento da pesca artesanal, ampliou sua escala de análise. Neste livro, revela sua compreensão sobre esta problemática em escala nacional. Seu caminho analítico aborda a complexidade da pesca artesanal no Brasil, desvenda os impactos ambientais que provocam conflitos entre os comunitários e da mesma forma com os agentes externos que os pressionam, e prossegue demonstrando que esses conflitos ao fim e ao cabo expressam demanda por território, por recursos (pesqueiros), mas também por espaços para ampliação imobiliária e mesmo pelo turismo, gerando desassossego nas comunidades.
Ao longo deste livro, o leitor terá uma leitura interpretativa desta problemática sustentada em questões como: "Qual é a compreensão da Geografia brasileira sobre a dinâmica dos territórios tradicionais dos pescadores artesanais? Em que medida seus conceitos, métodos e abordagens dialogam com o conhecimento tradicional dos pescadores artesanais em situações em que as comunidades são desterritorializadas? Até que ponto a compreensão desse processo pode contribuir para repensar a Geografia brasileira, a gestão comunitária da pesca artesanal e os contextos de luta por políticas públicas voltadas para o território das comunidades de pescadores?”.
Essas questões são respondidas através de minucioso levantamento sobre a produção geográfica sobre pesca artesanal no Brasil, revelando diferentes caminhos analíticos e, por outro lado, demonstrando a expansão dessa temática em território brasileiro através das políticas de expansão dos cursos de mestrado e doutorado, hoje se descentralizando e estando presente em todas as regiões brasileiras. Esta análise lhe permite compreender a diversidade de análises produzidas e demonstrar a emergência de uma pesquisa centrada, como se refere, no diálogo de saberes. Constituindo este, o procedimento que considera relevante para compreender o processo de desterritorialização dos pescadores artesanais pelos atores sociais hegemônicos, detentores de capital e poder. Nesse movimento de construção intelectual, sua opção é a presença junto aos pescadores, junto às comunidades e suas organizações, enfim associando-se à luta. Sua práxis centra-se no ato de refletir e agir. Advém daí sua preocupação expressa na terceira questão enunciada quando se pergunta sobre até que ponto uma geografia assim anunciada pode contribuir num contexto de gestão comunitária e luta política que sejam voltadas aos direitos dos pescadores artesanais.
Sua análise busca compreender as múltiplas determinações da produção do espaço e a reprodução da vida; para tanto, estabelece profícua relação entre os conceitos de território e ambiente, em articulação com os tempos históricos, sobretudo quando aborda a modernização sob diferentes nuanças. Ao se referir à leitura trazida pelos pesquisadores, deixa revelada essa concepção; entre as propostas analíticas de compreensão de ambiente/território e a expressão da modernização, que é apontada pelos movimentos sociais que defendem o território tradicional como principal opositor.
Ambiente e território se conectam, se constituem de forma indissociável, na medida em que concebe as questões ambientais como decorrentes da dimensão territorial manifesta no poder, na economia e na apropriação dos recursos (naturais), mas também como condição de exploração, ao limite desses recursos e de vidas humanas. O ambiente para Cristiano não é apenas os impactos na natureza, o ambiente ao qual se refere expressa um movimento, onde recursivamente, se transforma em condições de vulnerabilidade a vida na sua condição fundamental - viver com dignidade.
O tema da pesca artesanal é desvendado seja na perspectiva da produção geográfica no Brasil, seja enquanto práxis, na medida em que Cristiano se constitui um geógrafo organicamente vinculado à vida da/na pesca, condição que nunca abdicou. Seu texto aqui expresso revela seu engajamento, sua dedicação e sua presença na luta junto aos pescadores artesanais. Academicamente, vai além dos estudos dedicados à descrição de um Modo de Vida, descortina a vida dos pescadores artesanais em um contexto amplo e complexo que expressa o que Morre (2016) denomina natureza barata (no caso o recurso pesqueiro) que, dando sustentação histórica ao capitalismo, hoje se torna uma natureza cada vez mais escassa, em que a exploração ultrapassa limites territoriais, invade comunidades originárias e/ou tradicionais, desconstrói relações comunitárias, promove espoliação, desterritorialização e fraturas sociais nas comunidades.
Chega o livro de Cristiano em um momento crucial. Chega trazendo uma leitura diferenciada e profunda do tema da pesca artesanal. Expressão de seu envolvimento e, ao mesmo tempo, de seu distanciamento para que pudesse construir um olhar que lhe permitisse uma produção acadêmica reveladora da realidade brasileira, aqui manifesta na pesca artesanal, mas que está presente em diferentes dimensões sociais, ou seja, na luta pela terra, pela água, pela floresta, enfim...
Leitura densa e instigante promove uma reflexão sobre a Geografia na sua capacidade de produção, no questionamento do fazer geográfico e na sua possibilidade de contribuição para a compreensão da realidade, no momento em que se dá e no seu movimento de superação.
O livro de Cristiano cristaliza um movimento que ele sabe contínuo, por isso constitui um registro que abre possibilidades, amplas, de reflexão e diálogo com aqueles que aportarem sua leitura.
Boa Leitura
Dirce Maria Antunes Suertegaray
Julho de 2023.