Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo "como ele de fato foi". Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeia no momento de um perigo.(Walter Benjamin, Sobre o conceito da história, 1940). AberturaPara o poeta Olavo Bilac (1919), a música brasileira era a "flor amorosa de três raças tristes": a portuguesa, a africana e a ameríndia.1 Fiel ao patrono do serviço militar, a musicologia nacionalista pratica uma xenofobia seletiva: ela oferece à schottisch, à polca, à mazurca e à habanera o passe-livre que recusa ao soul, à disco, ao funk, ao hip-hop, à house e a outras manifestações afro-americanas.De acordo com a historiografia, o samba nasceu em casa com número, de rua com nome. Desse domicílio, até a planta-baixa é conhecida (Moura 1983:67).2 A sala de visitas, da largura do imóvel, se abre sobre a rua, no limite sul da praça. Transposta a sala de visitas, chega-se à de jantar pelo corredor à direita, ao longo de três quartos, à esquerda. Também a sala de jantar tem a largura do imóvel. Ela se comunica com o quintal através de um corredor espremido entre a cozinha e a despensa. Alguns degraus o separam do pátio. É necessário descê-los para chegar-se aos fundos, onde se encontra o quarto de santo. Excetuados a despensa e os quartos de dormir, cada um desses espaços gesta ou acolhe um gênero castiço: choro, partido alto, capoeira, candomblé. Da porta de entrada ao fundo do quintal, passamos da negritude misturada à negritude pura, cujo lugar, em relação à rua, é o mais afastado possível. Ora, o samba não é "uma espécie de bule, onde entram, separados, o café escuro e o leite claro, e de onde jorra, homogêneo e harmônico, o híbrido café com leite" (Bilac 1906b (Carmen Miranda, 1938) Na história do samba, a casa de Tia Ciata tem um Doppelgänger: 3 a Festa da Penha, na qual, em corpo a corpo com o público, a música era testada. Na expectativa do entusiasmo etílico, afluíam comerciantes portugueses, capoeiras, malandros, sambistas, barraqueiros e tias baianas para o amplo espaço aberto, sem biombos ou compartimentos, disciplinado pela polícia. O mito de fundação do funk carioca 4 parafraseia a casa de Tia Ciata, com os DJs Big Boy e Ademir Lemos a dividir entre si o papel de tia baiana. A hegemonia do asfalto, reiterada, desloca-se para Botafogo, 5 mas a figura da democracia racial sofre severo abalo: no Baile da Pesada havia soul e funk para o subúrbio dançar e rock progressivo para a Zona Sul viajar.6 Organizador do mais politizado dos bailes dos anos 1970, Dom Filó contesta: "O primeiro baile foi na Zona Norte!" (Oliveira Filho & Cardoso 2010).A música funk carioca pode ter surgido em clubes na passagem dos anos 1980 para os anos 1990, quando as melôs 7 cedem lugar aos raps, mas é na década seguinte que ela adquire suas feições atuais: o tamborzão 8 substitui as bases 9 de hip-hop, electrofunk, electro e Miami bass; a putaria 10 e o proibidão 11 substituem os raps pede-a-paz; 12 pressionados por políticas ditas de segurança pública, os bailes trocam o asfalto pelo morro. Se ...
ReSumoEste artigo propõe a noção etnográfica e situada de transletramentos. Argumentamos que transletramentos são práticas de uso social da escrita que replicam e deslocam experiências de socialização mediadas por essa tecnologia e adquiridas em diversas agências de letramentoportos de passagem como a escola, a igreja, a família, o grupo musical, os coletivos políticos. Baseados em evidência empírica de nossa pesquisa sobre letramentos, produção cultural e regimes metapragmáticos no Complexo do Alemão/RJ e no diálogo com Raphael Calazans e Janaína Tavares, jovens que transitam por diferentes espaço-tempos sociais, propomos ainda que transletramentos são metáforas importantes para entender a questão da sobrevivência. Ao extrapolar circunscrições como vida e morte, escola e sociedade, estado democrático e estado penal, a sobrevivência nos permite trazer à tona reflexões sobre as estratégias que os sujeitos subalternizados encontram para escrever as suas próprias histórias. Palavras-chave: transletramentos; letramentos de sobrevivência; etnografia linguística. AbSTRACTThis article proposes the ethnographic metaphor of transliteracies. We understand transliteracies as practices of social use of writing which replicate and displace experiences * Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. adrianaclopes14@ gmail.com ** Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis (SC), Brasil. dnsfortal@gmail.com *** Museu Nacional -Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil.adriana.facina2@gmail.com **** Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. calazaaaans@gmail. com ***** Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil. janaa.tavaresv@gmail.com of socialization mediated by the technology of writing and acquired in multiple literacy agencies -transit points such as the school, the church, the family, the musical group, the political group. Based on empirical evidence from our research on literacies, cultural production and metapragmatic regimes in the Complexo do Alemão/RJ and on the dialogue with Raphael Calazans and Janaína Tavares, youths who circulate around different social time-spaces, we also argue that transliteracies are important metaphors to understanding the question of survival. While exceeding modern boundaries such as life and death, school and society, rule of law and penal state, survival permits that we think about the strategies devised by subaltern subjects in their inscribing of their own histories.
Resumo: Este artigo analisa um evento ocorrido durante pesquisa de campo realizada no Complexo do Alemão entre 2012 e 2014. A partir de um grafite pintado nos escombros de uma casa removida pelas obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento, lançado em 2007 pelo governo federal), e sua posterior destruição pelas autoridades municipais cariocas, a autora reflete sobre o significado da arte no contexto de culturas de sobrevivência, categoria analítica desenvolvida a partir da fala de um interlocutor da pesquisa, artista e morador do território. Sobreviver é entendido como experiência de driblar adversidades e produzir conhecimento e criatividade a partir da precariedade material e de direitos. Tal experiência molda relações temporais específicas e, no caso da criação estética, implica pensar a efemeridade e a perenidade da arte quando a vida está sob permanente ameaça.Palavras-chave: Arte. Complexo do Alemão. Culturas de Sobrevivência “THE STAIRS OF MEMORY”: ART AND SURVIVAL IN THE COMPLEXO DO ALEMÃO Abstract: This article analyses an event that took place during field research in Complexo do Alemão between 2012 and 2014. Based on a graffiti painted on the ruin of a house destroyed by the PAC (Growth Acceleration Program, launched in 2007 by the federal government), and its subsequent destruction by Rio's municipal authorities, the author reflects on the meaning of art in the context of cultures of survival, an analytical category developed from the speech of an artist, and resident of the territory. Survival is understood as the experience of dribbling adversity and producing knowledge and creativity from material precariousness and lack of rights. Such experience shapes specific temporal relationships and, in the case of aesthetic creation, implies thinking about the ephemerality and perenniality of art when life is under permanent threat.Keywords: Art. Complexo do Alemão. Cultures of Survival
Este artigo busca identificar narrativas de esperança produzidas por artistas e grupos culturais que desenvolvem suas atividades tendo como referência cultural as periferias brasileiras. Tais sujeitos periféricos se encontram em um “momento de perigo”, na expressão de Walter Benjamin, ameaçados pelo recrudescimento da violência armada contra a população negra e favelada, pelo aprofundamento da desigualdade econômica, pela destruição das políticas públicas de cultura e pela pandemia de COVID-19. Em tal contexto, esses sujeitos buscam se reinventar para seguir realizando seus trabalhos artísticos e culturais. Essas narrativas de esperança são compreendidas aqui como prática, em diálogo com a linguística aplicada e a antropologia linguística, bem como com a ótica bakhtiniana da linguagem como interação. Este artigo se filia ainda às reflexões antropológicas propostas por Vincent Crapanzano, Arjun Appadurai e outros que vêm se dedicando a configurar uma Antropologia do Futuro e uma Antropologia da Esperança.
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